Milagre na casa do Bolinha

Sobre o poder de compartilharmos nossas alegrias

Pedro Limeira
3 min readNov 3, 2018

“Eu ontem fui à festa

Na casa do Bolinha

Confesso não gostei

Dos modos da Glorinha

Toda assanhada, nunca vi igual

Trocava mil beijocas com o Raposo no quintal (…)”

Glorinha e Raposo ao fundo, na festa do Bolinha

Comecei o dia assim, cantando essa música pro meu pai, me aproveitando da facilidade de mandar uma mensagem de voz de hoje em dia.

A alegria veio logo cedo ao reconhecer em mim mesmo uma vontade de falar com os meus pais. Isso representa muito pra mim, o reconhecimento dessa vontade. Me pareceu um indício que um tanto da armadura que construí ao longo da vida — a história que me contei que não precisava de ninguém além de mim mesmo pra seguir em frente — já estava mais fininha, depois de tanto ferrugem criado por lágrimas.

Já atrasado pra uma reunião, mando uma mensagem de texto pra mamãe com um “Bom dia, mamá” e pra papai a música que inaugura essa memória. Ele diz que eu e meu irmão odiávamos quando ele entrava no modo vitrola quebrada e cantava essa música infinitamente nas viagens de carro. “Se não pararem de brigar eu vou cantar, ein?!” “Nãããão! A gente pára!” E assim sucessivamente, a cada 5 minutos até o destino. Hoje, a música adquiriu outro significado. Virou a diversão de entrar em coro juntos.

Nesse clima gostoso de saudade com vontade de estar junto, entro na reunião. Adotamos uma prática que chamamos de check-in — um jeito de trazer clareza pra quem está junto sobre como chegamos naquela conversa. Quando um diz que chega cansado, entendemos quando escolhe ficar em silêncio. Quando outro diz que chega com raiva, entendemos os possíveis tons mais altos ao tomar uma decisão. E lá vou eu dizer como chego.

“Tô muito feliz! Acordei com vontade de falar com meus pais! Até cantei uma música pro meu pai, que costumava a cantar pra mim quando era pequeno, numa mensagem de voz, escutem só:

Eu ontem fui à festa

Na casa do Bolinha

Confesso não gostei

Dos modos da Glorinha

Toda assanhada, nunca vi igual

Trocava mil beijocas com o Raposo no quintal”

E cantei de novo pras minhas colegas, confesso que um tanto receoso que não gostariam de que a Glorinha tivesse sido chamada de assanhada.

O breve silêncio que veio depois da minha cantoria foi interrompido pela Bárbara, com uma voz um tanto trêmula:

“Nó, Pedro, tô aqui muito agradecida”

(…) e um breve soluço de choro

“O meu pai também me cantava essa música, e ele está agora passando por uma fase difícil de saúde. Te escutar cantando me fez lembrar da vontade de estar pertinho dele também por agora.”

Arrepiei na hora e arrepio de novo agora ao escrever. Não existia a menor possibilidade no meu imaginário de que aquela simples vontade de compartilhar minha alegria pudesse ter tanto poder. Passei o resto do dia agradecido e conversando com o parceiro Rudolf Steiner que disse um dia: “Se estivermos vigilantes, não passará um só dia sem que aconteça um milagre em nossas vidas.

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